O conceito de escritório corporativo começou a ganhar corpo há cerca de 200 anos, durante a Revolução Industrial, como uma extensão das fábricas. Era um lugar criado com o objetivo de reunir pessoas para lidar com a papelada da burocracia que envolvia questões fiscais e administrativas. Como se sabe, a burocracia não parou de crescer — e esses espaços físicos também. Não é exagero dizer que a expansão do escritório moldou a vida urbana dos últimos dois séculos. Os prédios de escritórios foram ocupando as áreas mais nobres das cidades, empurrando as fábricas para o interior e os trabalhadores para bairros distantes.
Nesse processo, a natureza do trabalho também mudou. As tarefas ficaram mais complexas e os computadores permitiram reduzir o volume de papéis, mas a essência do escritório se manteve: um lugar onde os empregados se reúnem quase todos os dias no mesmo horário, e passam cerca de um terço da vida, para executar tarefas ao lado de colegas. Aí veio a pandemia do novo coronavírus. As empresas levaram um enorme susto, tiveram de instituir o trabalho à distância para boa parte de seus funcionários, e todos sofreram para se adaptar ao novo esquema.
Muitas delas fecharam as portas porque as fábricas pararam de produzir e o comércio deixou de vender. Não há notícia, porém, de quebradeira de empresas pelo fato de ter seus funcionários trabalhando remotamente. Ao contrário, surgiram relatos de ganhos de produtividade e de outras vantagens do trabalho à distância. A covid-19 continua espalhando medo mundo afora, mas, gradualmente, a economia está reabrindo. A questão agora é: como ficam os escritórios? Com o fim da quarentena, as empresas vão voltar a fazer tudo como antes?
Não é o que parece. Depois de testar na marra o modelo de “trabalho de qualquer lugar”, muitas empresas gostaram da experiência e pretendem acelerar uma tendência que, não fosse a pandemia, levaria anos para ganhar escala. Segundo uma pesquisa da consultoria Betania Tanure Associados feita para a EXAME, entre as empresas que adotaram o home office por causa da quarentena, 85% pretendem continuar, em diferentes graus, com a política para os funcionários. Os dados mostram que o trabalho flexível veio para ficar. Algumas empresas já tinham adotado esse modelo antes mesmo da pandemia.
Em seu primeiro dia como presidente da administradora de planos de saúde coletivos Qualicorp, em novembro de 2019, Bruno Blatt abriu as portas de sua nova sala — e não as fechou mais. Seu escritório ficava no 15° andar de um prédio em São Paulo e, para ter acesso a ele, os funcionários precisavam agendar horário com duas secretárias e passar por portas protegidas por seguranças. Blatt removeu as barreiras e transformou a cobertura onde ficavam as salas de diretores em um espaço para inovação, acessível a todos.
“Minha sala passou a ser meu computador e meu celular”, diz Blatt. “Acabei com a ‘diretorlândia’.” A informalidade e a flexibilidade foram estendidas aos 1.900 funcionários do grupo. Blatt autorizou a compra de 650 notebooks, para implantar o home office, e investiu 145 milhões de reais para transformar o sistema de vendas físico usado pelos 35.000 corretores de seguros num sistema digital, na nuvem. Com o ganho de eficiência, devolveu sete dos 15 andares do prédio. Segundo Blatt, o trabalho flexível faz parte da mudança na cultura para deixar a empresa mais ágil e proporcionar mais qualidade de vida aos funcionários.
Uma das vantagens desse modelo é ampliar as possibilidades de contratação de talentos. Uma empresa de São Paulo pode buscar o profissional com o perfil mais adequado no interior da Bahia, na Índia ou na Noruega. A britânica Claranet, fornecedora de serviços de tecnologia, adotou o home office como uma possibilidade permanente no Brasil. “Quebramos as fronteiras. Há projetos sendo desenvolvidos em conjunto por equipes no mundo inteiro”, diz Fábio Amigo, diretor-presidente da Claranet no país.
“Nas contratações, vamos buscar habilidades e o perfil de que precisamos. O lugar onde a pessoa mora é menos relevante.” A mesma política está sendo adotada pela empresa de tecnologia Stefanini, que tem 25.000 funcionários no mundo, dos quais 14.000 no Brasil e o restante espalhado por 40 países. Antes da pandemia, apenas 120 ficavam em home office. Agora quase 7.000 funcionários trabalharão de casa, apenas no Brasil.
“Há universidades muito boas no interior do país, e os alunos não precisam se mudar para as capitais em busca de trabalho. Os funcionários podem morar em uma cidade menor, com mais qualidade de vida”, diz Rodrigo Pádua, vice-presidente global de gente e cultura do Grupo Stefanini. O plano da empresa é colocar 50% dos funcionários em home office.
Se o ambiente de trabalho pode ser mais flexível, outros aspectos também podem se tornar menos rígidos. “O relógio de ponto perde totalmente o sentido. O importante é entregar o trabalho no prazo e com qualidade”, diz André Brik, especialista do Instituto Trabalho Portátil, uma consultoria em trabalho remoto. O publicitário Igor Rezende Ferreira, de 36 anos, é um exemplo dessa nova tendência. Há cinco anos, ele decidiu tirar um ano sabático e viajar pelo mundo.
Gostou tanto da experiência que decidiu se tornar um nômade digital. “Vi que não conseguiria voltar para o ambiente corporativo e parar de viajar.” Hoje ele é gerente de comunicação e marca de uma agência de viagens online com sede nos Estados Unidos. “Não tenho despesas fixas, como casa e carro, e posso viver em países com menor custo de vida. No Vietnã, com o que ganho, consigo alugar até uma casa com piscina.” Ferreira costuma dar expediente em cafés e coworkings. “Só preciso de notebook e internet.”
Para o americano Robert E. Siegel, professor de gestão na Universidade Stanford, a tendência ao trabalho flexível já existia e só foi intensificada pela pandemia. Segundo uma pesquisa global da consultoria Cognizant, a flexibilidade é capaz de trazer um aumento de até 13% na produtividade. Além disso, as companhias podem reduzir o custo por empregado em até 11.000 dólares ao ano.
Apesar das vantagens, Siegel lembra a natureza social das pessoas e não acredita que a função agregadora do espaço de trabalho desaparecerá. Embora não seja mais essencial para o trabalho em si, o escritório deverá se moldar à demanda por conexão, tornando-se um centro que oferece uma experiência melhor para encontros com clientes, cultivo de cultura e colaboração entre pares.
No dia a dia, ninguém vai lamentar a perda de cubículos impessoais, mas os profissionais vão sentir falta das conversas na hora do cafezinho. Para João Lucio de Azevedo Filho, presidente da Cognizant no Brasil, o escritório do futuro terá mais áreas para a confluência de pessoas e menos cantos individualizados. “Nos anos 2000, diziam que as empresas de tijolo e cimento morreriam e que tudo seria feito na internet. Eu ainda gosto de ir ao shopping, mas compro online”, afirma Azevedo Filho. “Nem tudo será remoto e nem tudo será presencial.”
A mudança de mentalidade das empresas em relação à organização do trabalho pode ter impacto também no mercado imobiliário. Uma pesquisa feita por uma das maiores empresas de arquitetura especializadas em projetos corporativos, a Athié Wohnrath, mostra que 51% das companhias consultadas pretendem reduzir o espaço do escritório.
“Vemos um potencial de liberação de área de 20% a 30%. Em média, os funcionários que ficavam um dia e meio fora por semana passarão a ficar dois dias e meio. Ou seja, ficarão metade do tempo fora da empresa”, diz Ivo Wohnrath, um dos sócios do escritório. No curto prazo, o pós-quarentena deve exigir mais automação para minimizar pontos de contato e reduzir os riscos sanitários. Maior frequência de limpeza, medição de temperatura, sensor nos elevadores, ativação de catracas por QR Code e maior distância entre as estações de trabalho são algumas das medidas que poderão ser adotadas no fim da quarentena.
Algumas mudanças deverão ser mais permanentes. Nos últimos anos, o espaço privativo diminuiu e aumentaram os espaços compartilhados nos escritórios. No Vale do Silício, empresas de tecnologia, como Google e Facebook, buscaram atrair funcionários com escritórios divertidos e cheios de mimos. Piscinas de bolinhas, escorregadores e mesas de pingue-pongue tornaram-se comuns.
O conceito de salas de descompressão está sendo deixado de lado, segundo o arquiteto Enrico Benedetti, sócio do Arealis, escritório de arquitetura especializado em ambientes corporativos. “Se uma empresa precisa de um espaço de descompressão, é porque os funcionários estão ficando estressados”, diz Benedetti. Hoje, de acordo com ele, o escritório está cada vez mais parecido com a casa — ambientes aconchegantes, com redes, sofás ou pufes, para trabalhar sozinho ou com colegas.
Esse tipo de escritório começou a ser popularizado nos últimos anos pelas startups. Um exemplo é a fintech de empréstimos digitais Geru. Em 2014, a empresa decidiu instalar seu escritório num local mais perto de onde seus colaboradores jovens trabalhavam, a região de Pinheiros, na zona oeste de São Paulo. A opção foi reformar um antigo teatro. As estações de trabalho foram montadas na área do palco, enquanto as áreas de descanso ocuparam a plateia superior. Do total de funcionários, 15% já trabalhavam de forma remota antes da pandemia, e o escritório servia apenas de ponto de encontro para reuniões.
A ideia da Geru é ampliar o home office gradualmente e, quem sabe, chegar a 100% no futuro. “Mesmo para quem ficava no escritório, sempre houve flexibilidade para trabalhar de casa eventualmente”, diz Sandro Reiss, presidente da Geru. “Mas exigimos disciplina. Não importa se o funcionário está no escritório, em casa ou trabalhando em um coworking. Ele tem de formalizar processos por meio de nossas ferramentas, estar plugado na videoconferência e manter a comunicação.”
Continuará havendo, é claro, quem prefira escritórios mais tradicionais. O Banco Original inaugurou recentemente sua sede, um prédio de 24 andares envidraçado no Brooklin, na zona sul de São Paulo. A sede é um cartão de visita do banco, reflexo da imagem que deseja mostrar ao mercado: uma empresa digital e moderna. Na entrada, há um sistema de detecção de temperatura corporal e uma câmara de desinfecção para tornar a volta ao trabalho mais segura após a pandemia.
O acesso dos funcionários é liberado por reconhecimento facial, que funciona até com pessoas que usam máscara. O escritório tem sofás, uma sala para cochilos e muito verde. O prédio foi pensado para acomodar o crescimento do banco digital. “Em 2019, o Original quadruplicou o número de clientes e contratou 700 pessoas”, diz Luciano Almeida, diretor de marketing, experiência do cliente e CRM do banco. A empresa conta agora com 1.500 funcionários. Cerca de 70% terão a opção de trabalhar de casa até três dias por semana.
Outra empresa que está planejando seu novo cartão de visita é a corretora XP. Ela quer mudar a sede, localizada na região da Avenida Brigadeiro Faria Lima, para os arredores da capital paulista. Como pretende aumentar o número de trabalhadores remotos de 50% para 80%, construir uma sede maior parece um paradoxo. Mas a ideia é que a nova sede, batizada de Villa XP, seja um ponto de encontro de funcionários, clientes e fornecedores, além de um centro de treinamento e perpetuação da cultura da companhia.
“A ideia é ter escritórios pulverizados em diversas cidades, o que nos permitirá contratar funcionários em qualquer lugar do país”, diz Guilherme Sant’Anna, sócio responsável pela área de gente e gestão da corretora. Diferentemente do empreendimento que lhe serviu de inspiração — a sede da Apple, no Vale do Silício —, o novo endereço da XP será mais frugal, segundo Sant’Anna. Ainda assim, o projeto prevê um showroom com sala de cinema 4D, heliponto e um complexo esportivo com piscina, academia e quadras.
Qualquer que seja o endereço comercial que conste no cartão de visita, a tendência é que haja cada vez menos distinção entre casa e trabalho. “No passado, vivíamos em um mundo de OU: ou escritório, ou casa; ou cidade, ou interior. O futuro é um mundo de E. As barreiras que existiam se dissolvem”, diz a futurista americana Elatia Abate (leia entrevista abaixo). Para especialistas, romper com o modo tradicional que mantinha a rotina abre caminho para soluções de problemas históricos no mercado de trabalho — e, por consequência, na sociedade — de inclusão e diversidade.
“Boa parte dos trabalhos não precisa de uma escala. Para pais e mães, isso significa poder passar mais tempo com os filhos, sem perder nas entregas”, diz Paula Crespi, cofundadora da startup Theia. “Quando as empresas entenderem que a geografia não é uma barreira, vão passar a perceber que o horário também não é.” Trabalhar de qualquer lugar já é uma realidade. Romper com o expediente fixo parece o próximo passo para tornar a vida ainda mais flexível — e, idealmente, menos estressante.
Fonte: Exame